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Por Paulo Cunha
Número 38
Quais
as razões que motivaram os poucos abalos sofridos na liderança
de audiência da TV Globo ao longo de seus quase 40 anos? Pra
começar, se ficarmos em apenas três momentos, vamos
chegar à conclusão de que a Vênus só
sentiu os golpes quando eles foram produto da criatividade, da ousadia
ou do apelo à baixaria.
Foi assim em 1990, quando a novela “Pantanal”, dirigida
por Jayme Monjardim, estreou na extinta TV Manchete. A personagem
principal, Juma Marruá (Cristiana Oliveira), cercada de tuiuiús,
jacarés e sucuris, literalmente virava onça na trama
criada por Benedito Ruy Barbosa. A direção da Globo
(que havia recusado a sinopse de Ruy Barbosa), atormentada pela
erosão de sua até então inabalável liderança
de audiência, igualmente começou a virar onça.
Dava pra ouvir os rugidos dos diretores de programação.
E tudo por causa de uma produção ousada, a ponto de
apelar para tórridas cenas de nudez em pleno horário
nobre. A direção, confiada a Jayme Monjardim, botava
abaixo cláusulas pétreas da produção
televisiva, a principal delas a de que a telinha não comportava
planos abertos. O diretor, com muita competência, abriu a
grande angular sobre as belas paisagens pantaneiras. E o Brasil,
acostumado até então a assistir a novelas limitadas
às tomadas internas, com raras incursões no lado de
fora do estúdio, foi surpreendido por uma teledramaturgia
que não tinha medo de botar imagens em cinemascope dentro
da telinha. Para época, foi uma transgressão. Não
chegou a dar uma surra no ibope, pois a Manchete mal conseguia colocar
um, no máximo dois pontos à frente da líder.
Mesmo assim, para quem nunca havia encostado na emissora dos Marinho,
foi uma festa. Monjardim fez escola. Diversas produções
posteriores da própria TV Globo, em horário nobre,
passaram a se utilizar dos planos abertos, como em “Renascer”
e “O Rei do Gado”, do mesmo Benedito Ruy Barbosa.
Em 1991, quem apareceu para beliscar a audiência até
então folgada e tranqüila da TV Globo foi o vespertino
“Aqui agora”, inspirado em “As duas caras da verdade”,
um programa argentino. Mas o título “Aqui agora”
foi “chupado” de um programa dos anos 50, da extinta
TV Tupi. Apresentado por Ivo Morganti e Patrícia Godoy e
apelando descaradamente para o sensacionalismo, o “Aqui agora”
balançou o ponteiro do ibope e bateu de frente com o carro-chefe
da líder, o “Jornal Nacional”, forçado
a partir daí a incrementar seu jornalismo policial, para
equilibrar o jogo. Mas o “Aqui agora”, que contava com
“estrelas” como Jacinto Figueira (“O Homem do
Sapato Branco”) e o cavernoso Gil Gomes, terminaria morrendo
do próprio veneno, ao exibir ao vivo o suicídio de
um homem que se jogou de cima de um prédio. Começava
a decadência. Ainda assim, a ousadia formal do “Aqui
agora”, com o uso da câmera no ombro, aos sacolejos,
literalmente correndo atrás da notícia, sem cortes,
inaugurou a fase do “jornalismo-verdade” na televisão
brasileira, e fez escola. Uma escola de preceitos éticos
duvidosos, pois freqüentemente encostava ou mergulhava de cabeça
na baixaria, mas cuja matriz permanece bem identificável
em programas policiais como “Cidade Alerta”, da Record
e “Brasil Urgente, da Band.
Igualmente na linha da baixaria, o SBT mordeu o calcanhar da Globo
quando lançou o “Programa do Ratinho”, uma surpresa
para a audiência por misturar assistencialismo com exibicionismo,
tendo o apresentador Carlos Massa na figura do “justiceiro”.
A fórmula teve sucesso instantâneo, principalmente
por exibir as mazelas pessoais e sociais das camadas mais pobres
da população, usadas como atrações de
apelo fácil, bem como pelo tom deliberadamente escrachado
do apresentador. Campeão do ranking dos programas que mais
apelam para a baixaria na televisão brasileira, hoje se encontra
em franca decadência. O “Programa do Ratinho”
teve, entretanto, o (único) mérito de usar (“usar”
na pior das acepções) personagens reais para exibir
a realidade da vida privada das camadas mais pobres da população.
Foi a primeira vez que o povão pôde se ver e se ouvir
sem os assépticos e cintilantes cenários dos noticiosos
da tv.
Toda esta remissão se justifica para explicar a premissa
lá das primeiras linhas – a criatividade e a ousadia,
inclusive as que recorreram à baixaria (como o “Programa
do Gugu” na disputa com o “Faustão” nas
tardes de domingo), foram as únicas armas que até
hoje conseguiram fazer alguma diferença na disputa pela audiência
com a TV Globo. Todas essas experiências tiveram um traço
em comum: são isoladas dentro da grade das concorrentes.
Até hoje, a Globo não enfrentou a concorrência
de uma única emissora que, da mesma forma que ela, opere
em sintonia ampla com o conceito de programação. Talvez
por este motivo, a hegemonia do império global se mantenha
firme, e só tenha sofrido abalos mais sérios com o
impacto da chegada da tv a cabo, a multiplicação do
número de receptores e a popularização do controle
remoto. A concorrência permanece apática e sem rumo,
perdida entre a cópia pura e simples dos padrões globais
(que termina expondo a fragilidade técnica do copiador) e,
na mesma linha, comprando os passes de estrelas criadas e nutridas
no Jardim Botânico. Como toda imitação consagra
o imitado, e as estrelas globais, por si só, não são
capazes de arrastar a audiência para outra emissora, a platina
da Vênus continua luzindo, sem maiores arranhões. Os
resultados da ação dos copiadores e imitadores, na
maioria das vezes e com raras exceções, tem sido apenas
risível. Ou, em vez de arranhar, ajudam apenas a passar kaol
no platinado.
Paulo
José Cunha
Periodista, profesor e investigador de la
comunicación, Brasil |