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Por Maria Luiza Martins
Número
56
Cultura
e produção de sentido: perspectiva
crítica
O crescimento, em alcance e penetração,
da indústria cultural em toda sua multiplicidade
de suportes, dos impressos aos audiovisuais e
eletrônicos, a coloca como um dos mais
importantes elementos da produção
simbólica, uma vez que permeia, sempre
mais, o tempo de não-trabalho dos indivíduos
(sem desconsiderar que as mídias eletrônicas,
principalmente, estão presentes, também,
nos momentos de trabalho e de estudo). A partir
de uma perspectiva teórica que concebe
as narrativas e os discursos como elementos fundantes
do real, torna-se forçoso reconhecer que
a estrutura midiática hegemônica,
comprometida com um determinado ordenamento social,
incide decisivamente na constituição
do campo simbólico, alimenta as representações
sociais e atua expressivamente sobre os processos
de construção de subjetividade.
A sua quase onipresença nas sociedades
possibilitou o surgimento de uma cultura ou “ethos”
midiatizado construído basicamente sobre
os meios audiovisuais (sem pretender isolar seus
processos discursivos dos demais), tornando necessários
e urgentes aprofundamentos teórico-metodológicos
que dêem conta da relação
entre essa produção simbólica
que nutre a esfera pública e a elaboração
de estratégias discursivas que acabaram
por se transformar em um dos principais recursos
utilizados pelos grupos minoritários na
produção de identidades e na negociação
de seu espaço social e simbólico
com a sociedade.
A esfera da
produção cultural é, em
todas as sociedades, aquela em que se realizam
o aprendizado e a aquisição de
sentidos das relações sociais,
das formas de sociabilidade e se constroem visões
de mundo. Sua diversidade comporta diferentes
maneiras de apreender, avaliar, sedimentar ou
transformar as diversas relações
que indivíduos e grupos estabelecem entre
si nos planos social, econômico, político
e religioso. Constitui-se, também, em
núcleo gerador de identidade para indivíduos
e grupos à medida que oferece modelos
com os quais os indivíduos se reconhecem
e com os quais se identificam.
É nessa
esfera que circulam os diferentes discursos que
vão construir subjetividades e na qual
os indivíduos podem tomar consciência
de suas reais condições de vida;
por isso mesmo, é o campo no qual se desenrola
parte de uma luta política, fruto de um
processo cultural e histórico para a fixação
dos sentidos em uma dada sociedade. Construídas
de forma particular em cada tempo e lugar essas
subjetividades estão vinculadas às
condições de produção
da existência, tanto no aspecto material
quanto imaterial, este último visto como
espaço privilegiado que abriga as tradições,
a memória, os valores sociais. A existência
de diferenciação nesses aspectos,
no interior da sociedade, possibilita o surgimento
de conteúdos culturais e simbólicos
que refletem concepções e interesses
distintos ou mesmo conflitantes. O surgimento
de uma cultura em que as narrativas midiáticas
ocupam o lugar das matrizes culturais tradicionalmente
utilizadas como referenciais, coloca esses meios
no centro da produção cultural
e simbólica e dos agenciamentos subjetivos.
A produção da subjetividade não
é centrada no indivíduo, é
um processo social em que estão presentes
dispositivos e estratégias discursivas
que, por meio de relatos e narrativas (não
apenas ficcionais) não apenas nomeiam
ou representam o real, mas têm o poder
de instituí-lo1.
Conduzidas pelas forças hegemônicas
das sociedades, as instituições
midiáticas dispõem da instrumentalização
e do alcance necessários para forjar subjetividades
em conformidade com um certo ordenamento social.
Essas características fazem com que as
análises das produções culturais
não possam ser dissociadas das relações
de poder existentes nas sociedades, poder que
não se verifica apenas no sentido político
estrito do termo, mas que se estende às
relações entre classes, de gênero,
étnicas e outras. Para Bourdieu2
(2001:15),
o poder simbólico
[é percebido] como poder de constituir
o dado pela enunciação, de fazer
e fazer crer, de confirmar ou de transformar
a visão de mundo e, deste modo, a ação
sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase
mágico que permite obter o equivalente
daquilo que é obtido pela força
(física ou econômica), graças
ao efeito específico da mobilização,
só se exerce se for reconhecido, quer
dizer, ignorado como arbitrário... O
que faz o poder das palavras e das palavras
de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter,
é a crença na legitimidade das
palavras e daquele que a pronuncia, crença
cuja produção não é
da competência das palavras.
Parte desse
poder reside, justamente, na capacidade de ser
ignorado como tal e reconhecido como capital
simbólico legitimamente instituído,
e de transformar as relações de
comunicação em relações
dissimuladas de força. Daí resulta
que a importância dos discursos não
se restringe à representação
do real, mas reside em sua eficácia para
gerir processos e agenciamentos políticos,
identitários e de legitimação
destinados a produzir e reproduzir os sentidos
necessários para a manutenção
do consenso em torno de uma determinada ordem
social.
Nessa perspectiva,
a articulação dos discursos midiáticos
com as forças hegemônicas possibilita
a legitimação e a validação
de sua visão de mundo particular, naturalizando-a,
tornando-a imperceptível à medida
que tenta promover a exclusão ou a condenar
a uma invisibilidade os sentidos divergentes,
o que leva à uma “interiorização
muda da desigualdade” e ao que Bourdieu3(1999:7)
chama de violência simbólica, descrevendo-a
como uma
violência
suave, insensível, invisível a
suas próprias vítimas, que se
exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas
da comunicação e do conhecimento,
ou mais precisamente, do desconhecimento, do
reconhecimento ou, em última instância,
do sentimento.
Uma das tarefas
da crítica cultural e, sobretudo, da crítica
midiática tem sido a de identificar e
compreender o funcionamento e as dinâmicas
dos processos comunicativos e sua participação
na construção de visões
de mundo - suas bem elaboradas articulações
de informações, as escolhas apontadas
como possíveis e desejáveis, a
ênfase em determinados assuntos e a omissão
de outros, a escolha de temas e ângulos
em que serão mostrados atuam na atribuição
de sentido às coisas do mundo e às
relações sociais.
É na
esfera da produção simbólica
que se situam os embates pela sedimentação
dos significados sociais e essa percepção
leva à assunção da existência,
no campo das práticas discursivas, da
luta pela sua fixação, pois, além
das falas oficiais, hegemônicas, existem
espaços sociais e culturais independentes
que permitem a articulação e a
circulação de discursos dissidentes,
emergentes ou apenas expressões de singularidades
e de diversidade cultural.
Desse ponto
de partida é possível pensar a
produção cultural e simbólica
tanto como reprodução – a
partir do momento em que as falas individuais
repetem fórmulas consensuais ou refletem
o ideário hegemônico – como
também possibilidade teórica para
o surgimento de práticas discordantes
ou contestadoras, que podem transformar os significados
periféricos ou inaceitáveis em
legítimos e incorporá-los à
formação discursiva, desde que
esses discursos circulem socialmente e possam
ser, de alguma forma, legitimados por meio da
aceitação de setores significativos
da população.
Eni Orlandi4
(1996:162), autora que desenvolve importantes
trabalhos na área da análise do
discurso, afirma que
O sentido que
se sedimenta é aquele que, dadas certas
condições, ganha estatuto de dominante.
A institucionalização de um sentido
dominante sedimentado lhe atribui o prestígio
de legitimidade e este se fixa, então
como centro: o sentido oficial (literal).
Enfim, a atuação
dos meios de comunicação nas sociedades
é vista aqui como elemento importante
na construção da realidade social,
em especial dos conteúdos simbólicos
dessa realidade e da imagem que a sociedade e
os diferentes grupos sociais fazem de si mesmos
e dos outros. Eles apresentam e difundem idéias,
imagens e representações de uma
visão de mundo que indica as maneiras
adequadas de comportar, de viver, a noção
do correto e do impróprio, as expectativas
que se pode ter, a diferença entre o possível
e o utópico, enfim, atuam, ao lado de
outras instâncias, como construtores das
subjetividades. A forma como se é mostrado
na mídia, assim como a invisibilidade
midiática, é indicador relevante
para a compreensão do modo como a sociedade
retrata, reconhece ou ignora seus diferentes
membros e grupos. Essa política de visibilidade
tem a capacidade de atribuir aos diferentes atores
sociais, individuais ou coletivos, valores simbólicos
e relevância social que lhes outorgam reconhecimento
e legitimidade. Da mesma forma, as políticas
de visibilidade são, simultaneamente,
políticas de invisibilidade, à
medida que os modos de produção,
distribuição e circulação
de produtos audiovisuais dirigem e educam os
olhares para que as escolhas pessoais recaiam
sobre determinados tipos de produto, aqueles
que fornecem as diretrizes para as identificações
e referências, excluindo os demais.
Ainda assim,
pode-se considerar que a diversidade das experiências
objetivas e subjetivas seja empecilho para uma
aceitação completa das mensagens
recebidas, em razão do diferencial interpretativo
e significativo. Além disso, as múltiplas
mediações que se interpõem
entre produtores e consumidores culturais, faz
emergir, teórica e empiricamente, a possibilidade
de florescimento de novos discursos, novas narrativas
e novas instâncias de produção
de subjetividade, num processo de resistência
à força avassaladora da ordenação
institucional por meio de novas formas organizacionais
e discursivas. Ainda que em termos históricos
possa ser considerado um fenômeno recente,
o surgimento de diversas organizações
da sociedade civil que aglutinam interesses distintos
vem colocando em cena novos atores, novas falas,
novas narrativas identitárias. São
as minorias que começam a se organizar
em coletivos5
e tratar do encaminhamento de suas demandas materiais
e simbólicas. Em termos sintéticos,
pode-se dizer que o conceito de minoria refere-se,
aqui, àqueles grupos que, na abordagem
conceitual de Muniz Sodré6,
encontram-se em situação de vulnerabilidade
jurídico-político, social e cultural,
se reconhecem como singulares e buscam afirmação
utilizando, sobretudo, estratégias discursivas
que lhes dêem a visibilidade necessária
para empreender uma luta mais propriamente cultural,
mas não apenas.
Nessa busca
para adquirir visibilidade social, para legitimar-se
diante de membros de seu grupo ou da sociedade,
o recurso às estratégias discursivas
e às ações demonstrativas
são elementos fundamentais. Raquel Paiva7,
em texto recente, aponta, inclusive, o “risco
de que as ações minoritárias
possam ser empreendidas apenas em função
de sua repercussão midiática, e
que de algum modo esvaziaria a possível
ação no nível das instituições
da sociedade global”.
A compreensão
das possibilidades do alcance social e da efetividade
desses novos coletivos em busca de legitimação
de sua diferença e/ou de suas demandas,
a eleição das práticas comunicativas
como estratégia de construção
e afirmação de identidades, de
negociação de espaços simbólicos
com o conjunto da sociedade e de elaboração
de seu projeto histórico, coloca ao pesquisador
questões relacionadas ao refinamento de
teorias e metodologias destinadas a compreender
e contribuir para o desenvolvimento dos movimentos
contra-hegemônicos. As discussões
sobre multiculturalismo e sobre a visibilidade
que assumem as alteridades nas sociedades contemporâneas,
não raras vezes passam ao largo de questões
fundamentais, como a relação dialética
entre o reconhecimento do Outro e a reafirmação
de si mesmo. Este movimento pode ocultar um tipo
de orgulho ou presunção que acaba
por outorgar ao Outro lugares sociais, econômicos,
culturais (simbólicos) previamente determinados
nos quais o circunscreve e o mantém. Nesse
caso, se consideram imperativas as análises
que, a partir do referencial teórico próprio
da comunicação, apontem as possibilidades
dialógicas existentes entre a produção
midiática e a esfera do cotidiano, percebido
como uma das instâncias especiais em que
incide o processo de dinamização
cultural, trazendo para a vida concreta, em seus
aspectos material e simbólico, a efetividade
e a legitimidade da existência das diferenças.
O potencial
mobilizador do audiovisual
Ainda que a televisão
continue ocupando um lugar hegemônico na
produção e difusão de imagens,
na elaboração de representações
do mundo, na construção de sentidos
que circulam socialmente e na formação
do imaginário sobre os diferentes grupos
sociais, a cinematografias nacionais também
são representativas das reflexões
sobre as culturas e elementos fundamentais para
a compreensão das sociedades. Os produtos
audiovisuais que nelas são produzidos
ou nelas circulam são indicativos das
referências e modelos apresentados aos
distintos segmentos populacionais e podem também,
quase sempre, ser considerados modelares para
grande parte das audiências.
Apesar do monopólio
televisivo na produção e difusão
de bens culturais, a produção audiovisual
no Brasil, em particular no que diz respeito
à produção cinematográfica
– aí compreendidos os diversos formatos
e diferentes tecnologias empregadas – está
experimentando, desde meados da década
de 1990 um processo de aumento e diversificação
da produção. As alianças
com as redes de televisão, as maiores
oportunidades de realização graças
às leis de incentivo, a proliferação
de festivais, mostras, oficinas e cursos propiciam
a expansão do processo de produção
e a ampliação das oportunidades
de circulação e consumo. É
bem reconhecido o movimento que festivais, mostras
e ciclos cinematográficos trazem para
as cidades que os abrigam. Sejam elas pequenas
ou grandes, mesmo o olhar pouco atento pode perceber
alguma efervescência. De acordo com o Guia
Brasileiro 2006 de Festivais de Cinema e Vídeo,
está prevista a realização
de mais de cinqüenta eventos em todo o país,
o que revela a existência de um processo
de desconcentração e de diversificação
– em termos de formato e de temática
e localização geográfica.
São mais de dez festivais temáticos,
aí incluídos meio ambiente, gênero,
etnográficos, infância e outros.
A esses eventos somam-se os projetos de democratização
do cinema que apresentam filmes a platéias
comunitárias que não possuem meios
de acesso ao circuito comercial de distribuição
de filmes.
Por outro lado
o barateamento dos custos de produção
e de exibição de filmes propiciados
pelas novas tecnologias digitais pode facilitar
sua utilização para alcançar
amplas e diversificadas audiências e estender
sua utilização para além
dos propósitos educativos e/ou demonstrativos.
Ora, a produção
audiovisual é, reconhecidamente, percebida
como uma esfera privilegiada de produção
de sentido: vários estudos e pesquisas
realizados a partir de diferentes perspectivas
teóricas informam que os processos de
identificação provocados pela exibição
de filmes, documentários, animações
são bastante intensos e não podem
ser ignorados. O cinema brasileiro contemporâneo,
por exemplo, apresenta um crescimento no volume
e na qualidade técnica das produções,
e cresce também o volume de publicações
na área. Mas, atualmente, ainda são
escassas as pesquisas e publicações
que aprofundem temáticas relativas à
possibilidade de elaborações contra-hegemônicas.
Entretanto, a produção cinematográfica
parece não ter sido ainda percebida e
analisada em toda sua potencialidade para desencadear
outros processos comunicativos e inserir novos
temas e debates na agenda pública. Entretanto,
essa capacidade de mobilização
e de dinamização parece comprovar-se
a julgar pela repercussão popular de determinados
filmes e, mais recentemente, pela exibição,
na Rede Globo, do documentário sobre os
meninos que trabalham para tráfico de
drogas8.
Considerando
essa capacidade de provocar discussões
em torno de determinados temas, torna-se pertinente
analisar a incidência das produções
audiovisuais, em particular das cinematográficas,
nos processos de dinamização cultural
capazes de conduzir à elaboração
de discursos contra-hegemônicos. Neste
trabalho se utilizará o conceito de dinamização
cultural9 entendido
como a capacidade que os diferentes meios de
comunicação possuem de fazer circular
discursos e de provocar reflexões sobre
determinados temas, bem como das maneiras diferenciais
como os indivíduos e grupos se apropriam
dessas informações e os sentidos
que elaboram a partir delas.
Vários
anos de pesquisa sobre as práticas comunicativas
utilizadas pelos mais diversificados grupos e
organizações da sociedade civil10–em
particular em organizações não-governamentais
–, mostraram que é reconhecida a
capacidade que as mídias audiovisuais
possuem de provocar reflexões, questionamentos
e discussões ao mesmo tempo em que são,
também, suportes mais eficazes do que
os impressos, por exemplo, para mobilizar e mudar
comportamentos. No entanto, os processos de mudança
de hábitos, crenças, comportamento
oferecem extrema dificuldade aos comunicadores,
uma vez que se trata, na maioria das vezes, de
transformações de matrizes culturais
enraizadas na experiência e na memória
de indivíduos e grupos11.
Ainda assim, considerando suas características
técnicas particulares, sua capacidade
de despertar atenção, interesse
e de reavivar a memória, Arlindo Machado
chega a afirmar que as produções
audiovisuais podem ser consideradas como um “convite
à mobilização”12.
A respeito da
existência de algumas características
específicas dos meios audiovisuais, entre
elas a de um forte processo de identificação
com o representado, Jacques Aumont avalia que
mesmo o
filme mais
rudimentar, assim como o mais elaborado, é
capaz de nos ‘prender’: todos nós
tivemos essa experiência, na televisão,
de deixar-nos ‘prender’ pela identificação
com a narrativa de um filme que julgamos (intelectual,
ideológica ou artisticamente) indigno
de interesse, tanto quanto um filme reconhecido
por nós como uma obra-prima13.
Entretanto,
apesar de reconhecidas todas essas possibilidades
de utilização do audiovisual como
elemento de reflexão, de questionamento
e de dinamização cultural, são
poucas as iniciativas de utilizar esse potencial
em processos efetivos de transformações
subjetivas. A maioria das organizações
pesquisadas, quando o utilizam, como as que trabalham
com “sexualidade e saúde”,
por exemplo, o fazem buscando um efeito de demonstração
ou com objetivos claramente educativos.
De forma semelhante,
não é difícil constatar
que estudos mais sistemáticos e aprofundados
no que se refere à capacidade que as produções
audiovisuais possuem de incidir mais efetivamente
sobre as audiências, para além da
repercussão meramente espetacular, estão
apenas começando por meio de iniciativas
ainda um tanto isoladas14
e/ou de perspectivas antropológicas que
não têm como objeto de trabalho
a relação entre audiovisual, dinamização
cultural e afirmação e expressão
de identidades. Encontram-se mais facilmente
pesquisas referentes ao aprendizado e aos usos
didáticos e escolares do audiovisual do
que referentes à efetividade desses produtos
sobre os processos de mobilização
e de transformação social15.
Essa produção cultural oferece
ainda um vasto campo de trabalho ao pesquisador
preocupado com a relação entre
a mídia audiovisual e construção
de processos contra-hegemônicos, sem contudo,
descartar as reflexões sobre as possibilidades
analítico-discursivas oferecidas pelos
exercícios de interpretação
da linguagem cinematográfica.
Nessa perspectiva,
as produções audiovisuais possuem
elevado potencial para dinamização
cultural em dois aspectos: como evento espetacular
e como unidades isoladas (filmes).
Como unidades
de significação podem se constituir,
por si mesmas, em mapas de sentidos, oferecendo
oportunidades de reflexão e de questionamento
a platéias que incorporam essas narrativas
em seus discursos (seja assimilando, negando
ou ressignificando-as) no sentido de fortalecer
e legitimar singularidades perante si mesmos
e perante o conjunto da sociedade.
Como eventos
espetaculares são capazes de provocar
amplas coberturas de mídia e, portanto
de ser recebidos e apreciados por um público
bastante amplo. Mas, contraditoriamente, esse
caráter espetacular que quase sempre as
produções audiovisuais assumem,
a profusão de imagens que velozmente transitam
no circuito cultural durante sua realização,
também aceleram os processos de esquecimento
e banalização, enfraquecendo todo
o poder de sedimentação de poderiam
conter. No entanto, a eficácia dessas
produções transita por estratégias
de apropriação e (re)trabalho dos
conteúdos que vem a ser um processo de
dinamização cultural promovido
por práticas comunicacionais produtivas,
de reflexão sobre os produtos cinematográficos
que não se rendem à sua capacidade
de envolvimento e de sedução.
Cinema
e meio-ambiente: uma aliança possível
Como exemplo das
afirmações acima, pode-se citar
o grande evento em que se transformou o Festival
Internacional do Cinema e Vídeo Ambiental
(FICA) realizado anualmente na cidade de Goiás,
Brasil.
Criado em 1999,
o festival tem crescido enormemente, tanto na
quantidade de filmes recebidos para a seleção,
quanto na variedade temática, na oferta
de eventos paralelos, na visibilidade que obtém
nos outros veículos de comunicação
e, evidentemente, na quantidade de pessoas presentes.
Resultados preliminares
de uma pesquisa realizada no âmbito da
disciplina Narrativas audiovisuais contemporâneas16
informam que o público presente constitui-se
majoritariamente de jovens provenientes das cidades
vizinhas e da capital do estado, Goiânia.
Esses jovens, entre 13 e 18 anos de idade, comparecem
em busca da diversão e do entretenimento
nem sempre disponíveis em suas cidades
de origem. Os eventos paralelos, como shows com
artistas de grande sucesso popular, operam como
atrativos principais. Para aqueles interessados
em cinema, e secundariamente em meio-ambiente,
são oferecids mini-cursos e oficinas,
mas os freqüentadores representam uma minoria
diante da grande afluência.
Apesar de os
espaços destinados à projeção
dos filmes e às palestras serem completamente
ocupados e parecerem pequenos diante do número
de espectadores, a existência de uma multidão
de jovens que permanece ao largo das apresentações
e das discussões é sintomática,
indicativa de que a busca de espaços de
socialização prevalece sobre a
reflexão e o questionamento.
Da mesma maneira,
das diversas organizações com sede
no estado de Goiás e que têm o meio
ambiente como objeto de trabalho, a maioria não
se fez representar e não promoveu nenhum
tipo de divulgação de seu trabalho.
Até onde se pode avaliar os resultados
da pesquisa realizada, também não
se apropriaram do material cinematográfico
para dinamizar as relações com
seus diferentes públicos ou com sua clientela
preferencial. Embora os filmes fiquem disponíveis
para empréstimo, as solicitações
provêm, majoritariamente, das escolas públicas
(municipais) de ensino de segundo grau17.
A demanda de escolas de primeiro grau, de universidades
da sociedade organizada, em particular das ongs
ambientais, é muito menor.
Caberá,
então, àqueles que pesquisam as
potencialidades dos meios audiovisuais, chamar
a atenção dos “formadores
de opinião”, estejam eles nas escolas,
nas universidades, nas ongs ou nos órgãos
públicos, a tarefa de indicar as possibilidades
de questionamento, de reflexão e de mobilização
social que os meios audiovisuais possuem e apontar
os caminhos e as possibilidades de desenvolvimento
cidadão que este meio tão propício
a despertar inquietações pode oferecer.
Notas:
1
Ver a respeito, Muniz Sodré. O globalismo
como neobarbárie. In: Moraes, Denis de
(org). Por uma outra comunicação.
Rio de Janeiro: Record, 2003.
2 Bourdieu,
Pierre. A dominação masculina.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,1999.
3 Bourdieu,
P. Op.cit.
4 Orlandi.
E. A linguagem e seu funcionamento: as formas
do discurso. Campinas: Pontes, 1996.
5 A noção
de “coletivo” refere-se aqui a organizações
formais ou informais de atores sociais que possuem
objetivos específicos de atuação
e articulam suas atividades de forma planejada,
organizada e regular. Não é pertinente,
nesse momento, restringir o termo às figuras
jurídicas das ONGs (organizações
não-governamentais), das OSCIPs (organizações
da sociedade civil de interesse público)
e similares.
6 Sodré,
Muniz. Por um conceito de minoria. In. Paiva,
R. e Barbalho, A. (orgs). Comunicação
e cultura das minorias. S. Paulo: Paulus,
2005.
7 Paiva, Raquel.
Cinco anos de pesquisa e Comunicação
e cultura de minorias. Rio de Janeiro, Intercom,
2005.
8 Falcão:
meninos do tráfico. Documentário
realizado por MV Bill e apresentado em horário
nobre na maior rede de televisão brasileira,
a TV Globo, com grande repercussão midiática.
9 O conceito
de dinamização cultural vem sendo
desenvolvido por pesquisadores do MIGRACOM, grupo
de pesquisa sobre migrações da
Faculdade de Ciências da Comunicação
da Universidade Autônoma de Barcelona.
10 Mendonça,
M.L.M. Processos comunicativos e subjetividade:
desafios para o terceiro setor. Comunicação
e Política, Rio de Janeiro, v. 22,
p. 49-64, 2004. Mendonça, M.L.M. O marketing
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Mendonça, M. L. M. Terceiro setor e mudança
sociocultural: uma questão ainda em aberto.
In: XXVIII Congresso brasileiro de ciências
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Anais Intercom, 2005. Mendonça, M. L.
M. Comunicação, cultura e constituição
de sujeitos. In: Maria Nazareth Ferreira. (Org.).
Cultura Subalterna e Neoliberalismo: a encruzilhada
da América Latina. São Paulo,
1997.
11 Em trabalho
realizado para o Ministério da Saúde,
em 2005, foi possível verificar que a
resistência em mudar hábitos e comportamentos
arraigados há muito tempo é obstáculo
que oferece enormes dificuldades de ser superado
quando se tem por objetivo provocar mudanças
simultaneamente concretas e subjetivas em determinadas
populações. Essa resistência
põe em destaque certas estratégias,
como o uso de meios audiovisuais e de redes de
relacionamento. Ver. Mendonça, Maria Luiza
M. A utilização de redes como estratégia
de comunicação para o Terceiro
Setor. Santiago de Compostela, Espanha, Anais
do IV LUSOCOM, 2006.
12 Machado,
Arlindo. Máquina e imaginário.
S. Paulo: EDUSP, 2001, p.25.
13 Aumont,
Jaques e outros. Ensaios de interpretação
fílmica. Campinas: Papirus, 2002.
p.264.
14 Algumas
iniciativas de projeção de filmes
para platéias comunitárias, como
o projeto Cinema BR em movimento, no Rio de Janeiro
têm sido acompanhadas por pesquisadores.
Podem ser citados trabalhos de Josimey Costa
da Silva O encontro no cinema: mídia e
vínculo social (no prelo) e de Maximo
Barro, Na trilha dos ambulantes. S.
Paulo: Maturidade, 2000.
15 A literatura
sobre cinema e audiovisual perpassa, grosso modo,
três grandes áreas de interesse:
audiovisual e educação, teoria
e crítica cinematográfica e tecnologias
e técnicas audiovisuais. De forma semelhante,
as pesquisas e publicações sobre
comunicação e mobilização
social identificam a adequação
do meio audiovisual para a transmissão
de informações, como eixo para
discussões, mas raramente investigam sua
capacidade de impulsionar ações.
Não se sabe exatamente o que os retratados
diriam de suas representações.
Nesse sentido, pode-se falar em uma certa cultura
de autoridades; cujo paradigma pode ser verificado
na repercussão do já citado episódio
de transmissão do documentário
“Falcão: os meninos do tráfico”,
exibido nas telas da Rede Globo e que pautou
os outros veículos, mas não incluiu
como entrevistados garotos que hoje ocupam aqueles
postos.
16 Narrativas
audiovisuais contemporâneas, disciplina
ministrada pela autora no primeiro semestre letivo
de 2006. Facomb/UFG.
17 Informação
fornecida pela diretora do Museu de Imagem e
Som, Tânia Mendonça.
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Dra.
Maria Luiza Martins de Mendonça
Professora no curso de publicidade da Faculdade
de Comunicação e Biblioteconomia
da Universidade Federal de
Goiás. Pesquisadora na área
de mídia, cultura, minorias. Brasil |