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Por Denis Renó
Número
58
Introdução
As novas tecnologias têm possibilitado
ao mercado audiovisual o seu franco desenvolvimento,
em todos os gêneros. O baixo custo e as
facilidades de produção aliadas
aos resultados finais apresentados alavancaram
a produção do setor, que oferece
produções finalizadas, e muitas
vezes captadas, em sistema digital, combatendo,
assim, a quase inviabilidade econômica
de se produzir uma obra em película. Mas
todo esse desenvolvimento encontra uma lacuna
tecnológica, aparentemente tecnocêntrica1,
relacionada ao cinema interativo, ou às
narrativas que possibilitam ao espectador uma
participação na obra apresentada.
O espectador
também sofreu mudanças. Agora ele
pode ser chamado de espectador/usuário,
pois o mesmo está sempre disposto a “navegar”
pelas tecnologias oferecidas, mas o cinema não
possibilita essa atuação, tecnologicamente.
Tal situação irá se intensificar
em breve, com a implantação da
TV digital, que promete diversas inovações,
dentre elas a interatividade. Qual será
a possibilidade de se interagir no cinema quando
este estiver sendo reproduzido na TV digital?
Ainda não se definiu, ao menos no Brasil,
como isso vai funcionar. Apesar dos diversos
pólos de investimento de conteúdo
promovidos pelo Ministério das Comunicações
nos últimos anos, ainda não se
chegou a um resultado animador. O mesmo ocorre
em outros países, onde o investimento
em pesquisas existe a um tempo maior, e um dos
motivos que impossibilitam esse desenvolvimento,
atualmente, é a tecnologia de software
e de hardware. Mas a solução para
o cinema interativo, ou a sinalização
para um novo caminho, pode estar na narrativa,
e não somente na tecnologia. Desprendimento
do tecnocentrismo, onde a tecnologia é
o suficiente para a maioria das inovações,
é se faz necessário. Neste momento,
passa-se a valorizar mais a capacidade e a participação
humana no processo cinematográfico, realizado
pelo homem desde sua invenção no
século XIX.
Este artigo
analisa, num primeiro momento, questões
teóricas que apontam para a narrativa
como uma possível solução
aos impedimentos do desenvolvimento do cinema
interativo, ou expandido, de acordo com a denominação
de Shaw (2005). Para isso, foi realizada uma
pesquisa bibliográfica sobre os temas
montagem audiovisual, cinema interativo e migração
digital. Apoiou-se, para tanto, nas teorias de
Vilches (2003), Leone (2005), Shaw (2005), Lunenfeld
(2005) e Pudovkin (1983).
Em seguida,
aplicou-se uma pesquisa experimental de caráter
explicativo, trabalhando com um grupo definido
por conveniência. Para tanto, participaram
do teste seis profissionais e/ou pesquisadores
sobre novas tecnologias ou narrativas audiovisuais.
A eles foi oferecida uma obra audiovisual fragmentada.
Os fragmentos foram todos assistidos e os usuários/participantes
decidiram a ordenação destes para
a realização de uma narrativa com
sentido lógico e artístico. Os
participantes responderam um questionário
de seis perguntas fechadas e uma aberta a respeito
dessas experiências, definindo-as como
interativas ou não.
Com o resultado
final da pesquisa, que teve caráter experimental
por fazer parte da pesquisa de doutorado do autor,
espera-se assinalar para a possibilidade narrativa
de um cinema interativo, expandido não
só digitalmente, mas narrativamente.
O processo de montagem é interativo
Antes de discutir sobre possíveis processos
interativos existentes na montagem audiovisual
é preciso compreender a sua importância
no produto audiovisual, assim como suas origens.
Tais discussões são abertas por
Aumont (2004) de forma esclarecedora. O teórico
defende consideráveis mudanças
sobre conceitos de montagem cinematográfica
e discute seu significado. Para ele:
O cinema, com
efeito, conheceu outra forma de síntese,
conceitual, abstrata, aquela cujo protótipo
é o Eisenstein das “Notas sobre
O Capitã”; é com essa síntese
no horizonte que se dá toda a argumentação
clássica sobre a montagem, a tirania
do sentido e o direito imprescindível
do real de falar sobre si mesmo. Claro, na medida
em que ela é clássica, a polêmica
sobre a montagem (aquela que continuamos a descrever
como um enfrentamento Bazin vs. Eisenstein)
se viu, em data recente, consideravelmente deslocada,
e a montagem enquanto objeto teórico,
não é mais totalmente o que ela
era. A “interdição”
baziniana da montagem em nome de uma estética
do plano – do plano como vestígio
e revelação não passível
de ser fragmentada – foi ultrapassada
de uma só vez. (AUMONT, 2004:101).
Xavier (2005)
também defende o valor e a importância
da montagem no processo cinematográfico
para diversos cineastas e teóricos, como
Pudovkin (In XAVIER, 1983: 60), para quem “a
montagem constrói cenas a partir dos pedaços
separados (...). A seqüência desses
pedaços não deve ser aleatória
e sim correspondente à transferência
natural do observador imaginário (que,
no final, é representado pelo observador)”,
o que fortalece a possibilidade de comparação
entre os efeitos da montagem audiovisual com
os conceitos de hipertexto na Internet, onde
o usuário também escolhe os “pedaços”
textuais a serem lidos, não de forma aleatória,
mas como conseqüência do discurso
produzido por eles. Num olhar de caráter
audiovisual, segundo Leone (LEONE, 2005: 25):
Entendendo-se
a montagem como uma modalidade fundamental para
a narrativa, ela estabelecerá uma interdependência
de todas as expressões ao agir, através
do corte, como transformadora das materialidades.
Nessa perspectiva, o corte parece ser o fator
que trabalhará o material fotográfico,
como também o ordenamento do material
sonoro, moldando relações e associações
que integrarão a narrativa segundo as
concatenizações lógicas.
A mesma atividade
interativa, visualizada na montagem audiovisual,
é defendida pelo mesmo autor como responsável
por um processo compartilhado com outras expressões
comunicacionais e suas ferramentas. A viabilidade
de comparação entre a montagem
e o hipertexto justifica-se novamente por palavras
de Leone (LEONE, 2005: 103), para quem:
Não
é só a expressão cinematográfica
que contribui, através da montagem, para
as possibilidades narrativas das imagens. Depois
dela, as mídias eletrônicas, o
vídeo, o CD-ROM e o hipertexto. Todos
acabam abrigando-se nas possibilidades abertas
para edição, seja para narrar
uma história, seja para navegar nos discos.
Hoje é impossível pensar somente
em uma só mídia.
Tais possibilidades
são realizadas tanto pelo montador quanto
pelo usuário das ferramentas interativas
oferecidas pela Internet, realizando um novo
roteiro de leitura das mensagens a cada hora,
a cada opção escolhida. A informação,
tanto para um quanto para outro, é oferecida
fragmentada, dividida e interligada por nós
(RENÓ, 2006), oferecendo caminhos distintos.
Esse conceito de decomposição da
informação percebida com o hipertexto
é semelhante ao do audiovisual, que seleciona
seus fragmentos através da decupagem.
Segundo Xavier (XAVIER, 2005: 27):
Classicamente,
costumou-se dizer que um filme é constituído
de seqüências – unidades menores
dentro dele, marcadas por sua função
dramática e/ou pela sua posição
na narrativa. Cada seqüência seria
constituída de cenas – cada uma
das partes dotadas de unidades espaço-temporal.
Partindo daí, definamos por enquanto
a decupagem como um processo de decomposição
do filme (e, portanto, das seqüências
e cenas) em planos.
Atualmente,
as novas tecnologias sugerem uma migração
do audiovisual, hoje no cinema e no vídeo,
para a Internet, somando-se à possibilidade
de interatividade no processo. Não uma
migração como existe atualmente
em sites específicos de exibição
audiovisual (como, por exemplo, os sites Porta
Curtas2 e YouTube3),
mas com uma estética que ofereça
ao usuários processos participativos.
Isso é discutido pelas pesquisas em desenvolvimento
por Adrian Miles, Jefrey Shaw e Peter Lunenfeld,
ambos pesquisadores sobre o cinema interativo
e suas vertentes de produção e
linguagem. Segundo Lunenfeld (LUNENFELD, 2005:
356):
Apesar de estarmos
ainda no começo do processo, podemos
identificar as características focais
do domínio emergente do cinema digitalmente
expandido [o cinema interativo]. As tecnologias
dos ambientes virtuais apontam para um cinema
que é um espaço de imersão
narrativo, no qual o usuário interativo
assume o papel de câmera e editor.
Também
engajado com estes estudos, Miles (2005) foi
um dos responsáveis pelo fundamento principal
na estruturação do conceito de
interatividade existente num produto audiovisual,
de forma que fosse capaz de provocar novas experiências
em quem o assiste, conceituando isso como a característica
básica do cinema interativo. Para Miles
(MILES, 2005: 153):
Não
desejo criticar a colonização
do cinemático pelo hipertexto, mas, sim,
alterar as regras de engajamento. Em vez de
tentar pensar que o cinema pode oferecer ao
hipertexto, o que já assume uma territorialização
do hipertexto em termos do discurso escrito,
quero propor que o hipertexto sempre foi cinemático.
Apesar de estudado
com certa intensidade, o cinema com interatividade
ainda não atingiu o seu maior objetivo,
como declarado por Cameron (CAMERON apud
SHAW, 2005: 372), para quem o cinema interativo
deve ser capaz de, através do material
audiovisual, proporcionar ao público a
construção de suas próprias
experiências. Para ela:
Quando você
percebe pela primeira vez que os computadores
não são apenas ferramentas, mas
uma nova mídia, por meio da qual a informação
pode ser entregue de maneiras completamente
novas, uma lâmpada se acende – certamente
aconteceu na minha cabeça e vi acontecer
na cabeça de uma porção
de gente. Ao invés de sumos-sacerdotes
em torres de marfim decidindo o que será
um programa de TV, você pode oferecer
o material do programa ao público e eles
podem construir suas próprias experiências.
Ao mesmo tempo,
segundo Miles (MILES, 2005: 162), “uma
edição ou link é, se quiser,
uma manifestação da expressão
dessa força”, referindo-se à
interatividade. Percebe-se, teoricamente, com
a ajuda destes autores, que uma nova edição,
mesmo que pela seqüência particular
na abertura de links, pode-se obter uma nova
experiência e, conseqüentemente, atingir
o objetivo principal do cinema interativo, que
propõe uma participação
maior do espectador/usuário no processo
narrativo, associando novamente a montagem audiovisual
com o hipertexto adotado pela Internet.
Uma das discussões
relacionadas com o tema refere-se à autoria
de um produto audiovisual interativo. Quem é
o autor deste produto: o diretor ou o espectador/usuário?
As teorias atuais do cinema sugestionam um autor
supremo de uma obra. Porém, existem outros
autores responsáveis pelo resultado final
de um produto audiovisual. Além do diretor,
participam diretamente da obra o roteirista,
o montador, o diretor de fotografia, dentre outros
com menos importância. A participação
do diretor de fotografia na construção
narrativa, segundo Xavier (XAVIER, 2005: 20),
é explicada em:
A relação
freqüente vem do fato de que o enquadramento
recorta uma porção limitada, o
que via de regra acarreta a captação
parcial de certos elementos, reconhecidos pelo
espectador como fragmentos de objetos ou de
corpos. A visão direta de uma parte sugere
a presença do todo que se estende para
o espaço “fora da tela”.
O primeiro plano de um rosto ou de qualquer
outro detalhe implica na admissão da
presença virtual do corpo.
Porém,
essa admissão, assim como a extensão
para “fora da tela”, acontece de
forma imaginária, ou seja, a mensagem
pode ser reconduzida pelo diretor de fotografia,
dando a ele poderes de autoria. O mesmo ocorre
com o montador, que, segundo conceitos de André
Bazin (XAVIER, 2005: 88), o montador possui funções
de direção, por mais simples que
seja esta atuação. “A conclusão
de Bazin é que, mesmo no nível
mais imediato da apresentação dos
fatos, a mais modesta montagem já impõe
uma direção que tende a dar uma
unidade de sentido para os eventos”. Porém,
Xavier (XAVIER, 2005: 89) revela uma crítica
de Bazin a esta supervalorização
do poder de direção em “o
cineasta não é um juiz, mas uma
humilde testemunha” por ser claramente
favorável ao cinema direto, em contraposição
à montagem cinematográfica. Já
o russo Sergei Eisenstein (apud XAVIER,
2005: 129) justifica a montagem quando diz que
“diante de qualquer espetáculo,
é preciso, ‘guiar o espectador na
direção desejada’”.
Com isso, estes passam a ser co-autores da obra
audiovisual.
Mas a panorâmica
de autoria e co-autoria fortalece-se nos dias
atuais, onde a interatividade e a leitura hipertextual
e não-linear torna-se freqüente nos
processos comunicacionais. Com o advento da hipertextualidade,
o leitor/espectador passa a ser co-autor da obra,
pois a reconstrói no momento da leitura,
na escolha de novos caminhos e obtenção
de uma nova experiência, como defendido
por Cameron neste trabalho. Tal conceito é
fortalecido por Picos & González (PICOS
& GONZÁLEZ, 2006: 19), quando:
Segundo as
teorias ao uso, a irrupção de
uma literatura interativa e hipertextual nos
põe diante de uma nova forma de escritura
que joga contra a autoridade do autor: o autor
cancelaria a polissemia do texto e, como o Deus
da cristandade, deixaria pouco espaço
para converter o leitor em intérprete
promíscuo e criador de um texto aberto,
de um organismo intertextual conectado até
o infinito com outras mensagens e marcas em
evolução constante, um texto de
textos (literários, mas também
fotográficos, fílmicos, pictóricos
ou musicais), quem sabe o Livro dos Livros como
sonhou Maomé.
Com a leitura
hipertextual, o status de autoria ganhou mais
um coletivo de concorrentes: o leitor/espectador.
Vilches discute a respeito dos novos poderes
dos espectadores, agora usuários, no campo
do audiovisual como:
Os novos meios
parecem impulsionar uma dinâmica radicalmente
diferente, por generalização da
demanda. Portanto, a participação
nos produtos audiovisuais é um fato,
ante a exigida recepção passiva
da era da televisão. (…) Mas se
os usuários são agora criadores
de seus próprios produtos, o que acontecerá
com e teoria da mediação? (…)
Será que os usuários converter-se-ão
em criadores e escritores, apenas por passarem
a dispor de ferramentas interativas e de hipertextos?
(VILCHES, 2003: 20),
Com os novos
conceitos de autoria e co-autoria, provocadas
pelo advento da hipertextualidade, o leitor/espectador
não se contenta com a passividade (SANTAELLA,
2004). Essa necessidade da participação
pode se expandir para o cinema, quando este for
interativo, tornando-os diretores ao lado dos
tradicionalmente considerados envolvidos com
a produção de uma obra audiovisual.
Atuais
obstáculos tecnológicos
Atualmente, o cinema interativo é inviabilizado
por motivos tecnológicos. Espera-se que
desenvolvimentos de hardware e de software ofereçam
aos produtos idealizados como interativos a possibilidade
de abertura de participação aos
usuários. As idéias apontam para
produtos que ofereçam interatividade na
construção da história através
da utilização de equipamentos que
escolham dentro de um cenário (a imagem
na tela) um novo caminho a seguir ou possibilidades
a se desenvolver, com livre-arbítrio do
espectador. Segundo Lunenfeld, uma reportagem
publicada em Sidney sobre o primeiro Festival
de Cinema Interativo no programa Portugal Media
2001 supunha “uma tela de cinema ao seu
redor, exibindo uma cena panorâmica na
qual você pode escolher a ação
que deseja ver, aplicando o zoom em certos acontecimentos
e vendo algo diferente do que está sendo
visto pela pessoa ao seu lado” (LUNENFELD,
2005: 369).
Porém,
tais tecnologias estão ainda distantes
de surgir, segundo Shaw (2005). O mesmo autor
também discute as superações
que o cinema deve enfrentar em breve, sendo que
“o maior desafio para o cinema expandido
digitalmente é a concepção
e o planejamento de novas técnicas narrativas
que permitam que as características interativas
e emergentes desse meio sejam incorporadas satisfatoriamente”
(SHAW, 2005: 362).
Lunenfeld (LUNENFELD,
2005: 369) define o cinema interativo como “um
híbrido que foi um grande hype, mas que
nunca deu certo”. Mas, em seguida, o autor
indaga que apesar dos insucessos obtidos pelo
cinema interativo, os entusiastas não
deixaram de pesquisar e discutir a respeito,
assim como oficinas para o desenvolvimento de
ferramentas em diversas universidades norte-americanas
(como MIT e University of Princeton) e espanholas
(Universidad Autónoma de Barcelona e Universidad
de la Andalucía).
Outro obstáculo
do cinema interativo refere-se à autoria.
Quem é o autor de um filme interativo?
O produtor, que desenvolveu um produto que possibilita
ao espectador/usuário a participação
na construção, ou reconstrução,
de uma obra final, ou esse espectador/usuário,
que “dirigiu” a nova obra?
O tema autoria
é freqüente no debate sobre os meios
digitais. Mas não é tão
recente. O próprio Paul Levinson, ao
discutir sobre a inversão de papéis
entre autor e leitor nos meios digitais, coloca
a seguinte questão: “quem é
o autor de um filme?” (GOSCIOLA, 2003:
134).
Mas tal discussão
é amenizada por Bogdanovich (BOGDANOVICH,
2000: 21-22), que define o nível de autoria
audiovisual de acordo com o quanto o filme revela
da pessoa que o controlou, ou seja, se a obra
revelar mais sobre o espectador, este pode ser
considerado um autor. Como o cinema interativo
ainda não foi efetivamente oferecido ao
mercado, e ao público, pode ser prematuro
discutir o tema.
A narrativa
hipertextual como proposta: o experimento
Para tentar saciar as ansiedades e solucionar
problemas enfrentados, realizou-se um experimento-piloto
neste trabalho que contempla uma estrutura de
linguagem hipertextual baseada nos conceitos
de montagem audiovisual como a ação
de juntar as partes, organizar os planos, definidos
por Leone & Mourão (LEONE & MOURÃO,
1987: 15). A idéia adotada neste experimento
também resulta da interpretação
de uma possível solução
ao cinema digital sugerida por Shaw (SHAW, 2005:
362), para quem:
Uma estratégia
é desenvolver estruturas modulares de
conteúdo narrativo que permitam um número
indeterminado, mas significativo, de permutas.
Outra abordagem envolve o projeto algoritmo
de caracterizações de conteúdo
que possam ser moduladas tanto pelo usuário
como pelo uso de um modelo genético de
seleção. E talvez o desafio supremo
seja a noção de um cinema digitalmente
expandido que seja efetivamente habitado pelo
seu público, que, então, se torna
agente e protagonista de seus desenvolvimentos
narrativos.
As estratégias
tecnológicas sugeridas por Shaw não
foram adotadas neste experimento, apesar de tais
ferramentas estarem em desenvolvimento para o
experimento maior, que será realizado
num futuro próximo para a obtenção
de respostas para a tese de doutoramento em desenvolvimento
por este autor. Apoiou-se, neste trabalho, apenas
no conceito de organização de estruturas
modulares na narrativa, que se assemelha ao conceito
de montagem audiovisual de Leone & Mourão
(LEONE & MOURÃO, 1987). Também
apoiou-se na teoria de Shaw (SHAW, 2005: 356)
de que “as tecnologias dos ambientes virtuais
apontam para um cinema que é um espaço
de imersão narrativo, no qual o usuário
interativo assume o papel de câmera e editor”.
A solução em misturar audiovisual
com estrutura hipertextual para se obter uma
narrativa interativa apóia-se em conceito
de Leone, para quem:
Se no decorrer
do tempo o cinema consolidou suas originais
possibilidades narrativas, a televisão,
o vídeo e a multimídia absorveram
esses conhecimentos e deles se valem para criar
novas possibilidades e novas metodologias na
construção dos discursos audiovisuais
e dos discursos em hipertexto. Todas as mídias,
debaixo do manto da edição, acabam
se encontrando nas estruturas de dramatização,
pois o trabalho de articulação
produz o discurso com seus tempos e seus espaços
(LEONE, 2005: 103).
Para a realização
do experimento, fragmentou-se a obra do gênero
documentário Aurora, do cineasta Kiko
Goifman, em oito partes diferentes. Em seguida,
postou-se cada um dos fragmentos no YouTube,
em ordem aleatória, diferente da original.
Com isso, o participante do experimento teria
a possibilidade de definir a ordem de exibição.
O passo seguinte foi construir, em HTML, um arquivo
com explicações sobre os objetivos
e o funcionamento do experimento, onde o participante
deveria assistir todos os fragmentos oferecidos
na página, com link para o arquivo no
YouTube, e decidir qual seria a ordenação
de fragmentos ideal para aquela obra, remontando-a.
Como foram oferecidos oito fragmentos, existia-se
a possibilidade de obtenção de
40.320 resultados diferentes, não indeterminados,
mas significativo, como propõe Shaw (2005).
A etapa seguinte
foi definir o grupo participante. De forma aleatória
e por conveniência definiu-se um grupo
de seis participantes, formado pelo mexicano
Octavio Islas (professor doutor do Instituto
Tecnológico de Monterrey, México,
especialista em Cibercultura), o peruano Alejandro
Machacuay (professor da Universidade de Piúra,
Peru, especializado em audiovisual), a brasileira
Adriane Harder (mestre em cinema pela ECA/USP,
documentarista), o colombiano Jerónimo
Rivera (professor mestre da Universidade de Medellín,
Colômbia, especializado em audiovisual),
a equatoriana Maria José Martinez (professora
da Universidade Técnica Particular de
Loja, Equador, especializada em comunicação)
e o brasileiro radicado no Canadá, Paulo
Salomão (documentarista). Todos receberam
o arquivo em HTML e um questionário, escrito
em dois idiomas (português e espanhol)
com seis perguntas fechadas e uma sétima
questão para os mesmos definirem a ordem
escolhida para a remontagem da obra. Porém,
Jerônimo Rivera sentiu dificuldades em
compreender a obra utilizada no experimento devido
às diferenças de idioma, em português,
o que impossibilitou sua participação
no experimento. O mexicano Octavio Islas também
não retornou o experimento dentro do prazo
estipulado da pesquisa, por motivos não
explicados pelo participante. Os demais participantes
não apresentaram tal dificuldade, mas
este fato direciona o experimento efetivo da
tese para cuidados com a legenda ou a tradução
dos vídeos utilizados, pois na ocasião
a maioria dos participantes pertence a países
hispânicos, assim como definir um grupo
participante realmente engajado com a temática
do experimento, o que pode reduzir o índice
de não-participação.
A primeira pergunta
indagou os entrevistados quanto à participação,
se eles consideraram ter participado do resultado
fílmico apresentado com a reorganização,
oferecendo apenas alternativas sim e não,
direcionando-os para a pergunta seis no caso
da resposta ser negativa. O resultado foi animador,
pois 100% declararam ter participado.
A segunda pergunta
avaliou o nível de participação
considerado por eles, com opções
de nível total, alto, médio, pouco
ou nenhum. Dentre as cinco opções,
25% declararam ter obtido participação
total, 25% consideraram a participação
de nível alto, 25% consideraram sua participação
média e 25% considerou pouca participação.
O tema autoria
começou a ser abordado na terceira pergunta
que indagou se o produto final apresentado após
a reorganização podia ser considerado
novo filme. Chegou-se ao resultado de 75% para
a resposta sim e 25% para a resposta não.
Novamente, na
questão quatro, discutiu-se a autoria,
agora de forma direta. Perguntou se os entrevistados
eram autores da nova narrativa apresentada com
a reorganização dos fragmentos.
Dos seis participantes, novamente 50% considerou
sim e 50% optaram pela resposta não.
A quinta questão
referiu-se ao sentido lógico apresentado
com a reorganização proposta, pois
essa é uma preocupação com
relação à perda da linearidade
narrativa. O resultado apresentado foi 100% para
a opção sim, apesar das diferentes
estruturas narrativas propostas. Como defende
Vilches (VILCHES, 2003: 158):
Tanto na literatura
como no cinema, várias obras buscam centrar
o interesse não na ação,
nem na trama com um conflito central, e tampouco
na relação princípio-meio-fim,
mas nas estruturas mentais. As obras não
lineares, tanto na literatura como no cinema,
apontam para a substituição das
partes ou seqüências de continuidade
narrativa, para nos apresentar um mosaico, que
nos devolve o tempo e o espaço numa só
unidade.
A sexta questão
indagou se esse formato proposto de reconstrução
narrativa tendo como base conceitos de montagem
audiovisual e estruturas hipertextuais podia
ser considerado um possível conteúdo
para a Internet ou para a TV digital. Dos cinco
participantes, 100% disseram sim, defendendo
a viabilidade desta pesquisa. A resposta pode
sinalizar um problema apresentado por Leone (LEONE,
2005: 111), para quem:
Hoje, um problema
está posto e não é o de
uma crise de imagens, mas o de uma crise de
idéias. Então, é urgente
rever o problema da montagem com o advento das
transformações tecnológicas,
já que montagem retorna com tudo nos
dias de hoje, inclusive permitindo que aquele
que foi espectador passivo no passado, seja
hoje um ativo editor, selecionando e editando
até aquilo que lhe chega pela Internet.
Por fim, na
questão sete, foram apresentadas as propostas
de reorganização dos fragmentos
audiovisuais da obra, ou seja, uma nova montagem.
O resultado foi diferente para todos os casos
propostos, dentre as 40.320 possibilidades de
agrupamento. Apenas o primeiro fragmento, que
possuía o nome do documentário
logo no início, foi escolhido por 75%
dos participantes e 25% optaram por um início
diferente. O curioso é que este fragmento
não é a abertura original da obra,
o que demonstra uma interatividade mesmo com
relação ao projeto de Kiko Goifman.
Conclusões
Concluiu-se com a pesquisa que a preocupação
tecnológica para o cinema interativo é
coerente, mas talvez não seja a única
saída, atualmente. As propostas e os anseios
apresentados pelos estudos freqüentes sobre
o tema exigem recursos tecnológicos quase
pirotécnicos, vistos em filmes futuristas.
Isso não quer dizer que tais anseios sejam
impossíveis, mas com a estrutura tecnológica
existente tais exigências inviabilizam
o cinema interativo.
Percebeu-se
que as soluções para o cinema interativo
podem estar num campo simplista: o da narrativa.
Afinal, a interatividade já foi obtida
em estruturas literárias, onde o leitor
pôde escolher o novo passo. O conceito
de interatividade para Cameron, apresentado neste
trabalho, é o de o usuário conseguir,
através de novos caminhos, adquirir novas
experiências. Com o formato experimentado,
os usuários participantes seguiram por
caminhos diferentes, e obtiveram novas experiências,
sem, contudo, que ambos considerassem autores
da obra.
Este ainda é
um experimento-piloto de uma tese de doutoramento
que se inicia, e que terão anos de estudo
para desenvolver. Para que a proposta seja efetivamente
segura, será preciso apresentar novos
estudos experimentais, tanto no quesito perfil
de participantes quanto nos quesitos intensidade
e profundidade de testes. Contudo, os resultados
apresentados neste trabalho apontam para uma
direção segura, positiva e com
chances de contribuir para a adoção
de um novo, mesmo que provisório, formato
narrativo que oferece aos espectadores/usuários
certo nível de interatividade, pois, com
as novas tecnologias digitais, as descobertas
são tão freqüentes que elas
já surgem obsoletas.
Notas:
1
Tecnocentrismo é o termo popularmente
utilizado àquelas atitudes que valorizam
demasiadamente a capacidade da tecnologia, considerando-a,
em certos casos, como a capaz de saltar a humanidade,
por si só, esquecendo-se do poder humano
por trás destes artifícios.
2 Disponível
em (http://www.portacurtas.com.br),
o Porta Curtas foi objeto de estudo de caso da
dissertação desenvolvida pelo autor
deste projeto, intitulado “Características
comunicacionais do documentarismo na Internet:
estudo de caso site Porta Curtas”.
3
Disponível
em (http://www.youtube.com),
o YouTube oferece ao usuário cadastrado
a possibilidade de hospedar suas produções
audiovisuais, gratuitamente, e ainda contar com
ferramentas interativas, mas não possibilita
uma participação na narrativa da
obra audiovisual.
Referencias:
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Tradução de Eloísa Araújo
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São Paulo: Editora Senac São Paulo.
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as novas mídias. São Paulo:
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Mag.
Denis Porto Renó
Productor de cine documental, miembro de la Red
INAV – Red Iberoamericana
de Estudios sobre Narrativas Audiovisuales,
Brasil. |